Um corpo a cada clique:
a vida cuir no Habbo Hotel

Boa parte de minha infância foi brincada nas ruas próximas da casa de minha avó. Só descobri há pouco tempo, que viver em movimento entre a encruzilhada que unia a porta da rua às demais daquele bairro central, naquele município do interior goiano, me fez ser aquele menino eStRaNhO. Mesmo ainda me sentindo confusa sobre o que isso poderia representar, esforcei os braços, e com vontade, decidi desempilhar duas cadeiras de plástico e me sentar com ela naquela porta. Pronto para enfrentar tudo, me senti perdido ao ver a vó, entre uma palavra e outra, me mostrar que o meu corpo, mesmo criança, comunicava o que ainda hei de aprender somente no amanhã.
Como alguns dos meninos ali, minhas tardes eram de disputa com os poucos carros da cidade para ocupar a rua. Havia várias possibilidades para remontar aquele espaço, seja inventando histórias, nos escondendo, correndo, ou com uma bola na mão. Naquela época, eu até gostava dela, mas preferia nas mãos do que nos pés - ao contrário de todos os outros ali. Quando me davam uma oportunidade para a brincadeira de queimada, era a hora de chamar mais pessoas, especialmente as meninas. Enfim, era o momento de aproveitar algum convívio diferente.
As primas e irmãs daqueles meus amigos eram muito interessantes. Sempre quis passar todo o tempo possível com elas e curtir um pouco do que faziam. Não brincavam de boneca, afinal elas já tinham lá seus 14 anos. Era mais pela presença diferente. Mesmo com pouca idade, eu ouvia bastante referências naquela rua sobre os corpos femininos, somente com uma possibilidade sexual, nada amigável. Por um tempo, sem muita reflexão sobre as coisas, isso fazia sentido pra mim. Eu era um deles, o menino, o macho, o homem, o grandão, o fortão…
Em algumas saídas diurnas, havia brechas para estar, ainda, com eles e elas. Era a hora de me aventurar nesse mundo novo. Na casa dos meus pais, havia um computador que eu podia usar, mas que, em boa parte do tempo, estava sob a custódia da minha mãe. Portanto, nas oportunidades que eram garantidas, eu passava horas vendo as meninas revezando entre seus perfis fakes do Orkut, no único computador da casa vizinha. Às vezes, forçava mais a barra e conseguia fazer com que elas deixassem eu tocar no teclado, e, se estivessem generosas no dia, eu podia ficar mais um pouquinho ali.
Meu lugar era num banquinho de madeira, quase ao fundo do quarto onde ficava o computador, muro a muro com a área da minha vó. Às vezes, elas sequer notavam que eu estava ali, ou simplesmente ignoravam, mas eu fazia questão de estar lá. Do outro lado da parede, na rua onde os meninos continuavam jogando bola, o tempo também passava, mas algo estava ficando diferente: já não faziam tanta questão da minha presença, assim como eu da deles. Ora, naquela altura, já era muito mais divertido estar ali sentado no computador do que correndo atrás daquela bola.
Nos dias em que meu banquinho não estava disponível, eu ia à rua ficar com eles. Treze anos passados, eu percebo que ali, as leituras sobre mim não eram mais as mesmas. No futebol, ao invés de zagueiro, agora eu era o goleiro. Passei de biro-biro - em referência aos cabelos longos, encaracolados e loiros do ex-jogador de futebol brasileiro - a torcedor do São Paulo Futebol Clube, em referência à relação que se estabelece, até hoje, entre o time e pessoas gays, de forma pejorativa.
Já nas conversas, eu tinha de escutar, eles sequer estavam dispostos a me ouvir. Confesso que talvez tenha ficado um pouco chato - aos olhos deles -, tudo o que eu tinha para falar vinha daquele quarto no qual, mesmo quando estava correndo ali do lado de fora, nunca deixei de dar uma espiadinha pela janela que, da rua, dava direto para a tela do pc.
Eu aceitei o lugar que me colocaram. Até mesmo quando, por obra do acaso, os chutes para o gol começaram a ser mais fortes, localizados e acompanhados de gritos “olha a bicudona, foi direto na barriga” e, logo em seguida, risadas. Ainda havia os que ficavam marcados bem de vermelho no lado do rosto. Nesses, vez ou outra, eu ainda tinha alguma ajuda. O medo de que o “protegido da vovó” chegasse marcado em casa falava mais alto.
Por mais que eu não a visse ou percebesse algo naqueles momentos, entre uma passagem até o mercado, ou na casa de uma vizinha, havia um olhar atento às coisas que ocorriam ali pela rua por parte da minha avó. Houve até momentos em que ela questionava sobre as marcas. Já cheguei a dizer que elas vieram por causa de um tropeço, ocasionando em uma batida do meu rosto com a bola. Eu tentava omitir, e por outro lado, ela também.
Apesar de nunca ter me dito, descobri que quase dia sim, dia não, ela usava do corpo - especialmente da boca e das mãos - para me defender. Ou era bronca nos meninos, ou indo direto em suas famílias para contar o que estavam fazendo, sem qualquer menção, aparentemente, ao meu corpo, dado como aberrante. Quando isso já não funcionava mais, as tardes começaram a ser só até o banquinho da casa ao lado, ou ficar pela casa da vó mesmo, vendo televisão ou inventando uma brincadeira qualquer.
Um dos meninos dali, após um tempo, começou a bater na porta da casa da minha avó para pedir que eu fosse até a rua com ele. No entanto, eu já não podia mais. Por tanta resistência, em dado momento, ele passou a poder entrar. Passávamos as tardes juntos e, mesmo carregando partes daquele grupo de fora, eu me sentia enxergado por ele, sem muitos dos pesos que eu carregava, mesmo sem saber.
À época, por medo, eu não gostava mais de passar em uma das ruas próximas de onde ficavam os meninos. Por um tempo, sem não estar mais tão sozinho, gosto de pensar que comecei a lidar com eles com indiferença - mas acho que isso talvez seja um orgulho do presente, na cabeça-criança, já nem me lembrava mais. As coisas passadas não me atormentavam tanto como hoje.
Meu foco passou a ser brincar com o menino, cujo nome celebrava a vida de um profeta dos livros cristãos. Ele passou a ser alguém com quem eu podia contar, e por quem eu tinha um sentimento amigável. Esse que, com o passar dos anos, se elevou a algo mais. Voltando com o olhar para o passado, a memória traz lembranças que me fazem ter uma sugestão do que se trata. Naquela época, eu jamais conseguiria decifrar isso.
Foi nesse momento que conheci, por meio desse amigo, uma LAN house. Eu sempre passei na porta, mas não sabia o que se passava lá dentro. Antes, no mesmo lugar, havia uma locadora de filmes. Ela nem ficava muito longe, eram menos de dois minutos a pé do portão de casa, e como íamos correndo, gastávamos um terço desse tempo.
Minha avó dava uns trocados para nós dois, sob a condição de que só ficássemos até a hora de cada um ir, sem titubear, para sua casa jantar e se aprontar para dormir. Fui apresentado a todo tipo de jogos e conversas naquele espaço. Apesar de crianças, compartilhamos mesas, lado a lado, com outras pessoas que já eram bem mais velhas que nós. Um outro menino, que conhecia o meu amigo, e devia ter a idade das meninas da rua, jogava muitos jogos de tiro, e era isso que tínhamos como referência naquele momento.
Eu não era bom com aquilo, então jogava uma partida ou outra, e ia navegar na internet. Foi numa busca por outros jogos que encontrei o Habbo Hotel. A proposta do jogo é montar um avatar e se comunicar com pessoas, podendo construir quartos e viver uma vida, assim como no mundo real. Na página inicial, havia um aviso, que permanece até hoje: “O Habbo Hotel é recomendado para maiores de 13 anos”. Eu estava com onze, mas o que era uma diferença de dois anos? Afinal, não tinha ninguém me olhando. Ali, eu me tornava um cidadão habbiano.












Sem muita certeza quanto à idade, João se lembra que começou na vida habbiana quando ainda estava entrando no quinto ano da escola, em Portugal. Ele usa da memória do ano escolar para dar uma proximidade da idade: “devia ter cerca de nove, oito anos”. À época, além de ter que enfrentar, em família, um câncer que acometia a mãe, ele narra diversos enfrentamentos e encruzilhadas pessoais que, hoje, fazem parte do seu corpo.
Até chegar a esse momento, João vivia com a mãe e a irmã, oito anos mais velha. Do período na vila portuguesa de Póvoa de Santa Iria - distrito de Lisboa, ele se lembra ainda que tinha boas amizades, mas “nada muito profundo”. Se definindo inicialmente como uma criança muito reservada, logo em seguida ele se diz num lugar de ser e não-ser em comparação com as demais crianças: “não é que eu fosse diferente das outras crianças, mas ao mesmo tempo era, porque não havia mais ninguém como eu, pelo menos no espaço em que eu cresci”.
Um dos motivos desse questionamento é que ele “só queria brincar com os rapazes”, o que seria sugestivamente abjeto à percepção dos outros. Na diferença, João conta que sua irmã era quem sabia tudo sobre ele. Foi com ela que houve os papos sobre sexualidade e, mais adiante, identidade de gênero. E quando isso não era sequer questão percebida, ela era território de acolhimento e proteção.
Com o câncer da mãe e com a irmã indo para Luxemburgo cursar o ensino superior, João foi para a casa dos tios em Catujal, vila também dentro do distrito de Lisboa - capital de Portugal. Por ter subido de série, ele foi acompanhado de um computador que, em tese, serviria para os estudos. “Todas as pessoas de confiança com quem eu podia ser eu, não é? E não ter medo de me expressar, não estavam comigo”, relembra.
Na casa do João, ele sequer pensava em ter um quarto cor de rosa, mas, na tia, todo o espaço era tomado pela cor e por tudo que fosse percebido como artefato feminino. “Eu tinha o colchão da cama cor de rosa, as fronhas cor de rosa, nas paredes tinha coisas cor de rosa, era tudo cor de rosa naquele quarto, tudo que tentavam dar era cor de rosa. Ou seja, parecia que eu não podia escolher, até podia ser roxo, mas não posso escolher outra cor, tem que ser tudo cor de rosa”, desabafa.
João me conta que a visão feminina da tia o atravessava de todas as formas. Até chegar ao nono ano na escola, ele não tinha muita palavra sobre o que poderia vestir, ou não. Era o que a tia dava, os presentes de natal de outros parentes e pronto. A mãe até tentava comprar aquilo que ele queria, mas pela condição, que a impossibilitava de trabalhar, a falta do dinheiro atrapalhava nessa ajuda. “Coisas de género [gênero]”.
Tais coisas também começaram a refletir além das paredes da casa de João. Com a mudança de escola, ele começou a sofrer mais violências por causa da diferença entre suas escolhas e o que esperavam dele: “gozavam por tudo, porque eu queria jogar bola, porque eu me vestia mais como rapaz”. João fez questão de marcar que o momento foi horrível e complicado, fazendo com que, mesmo com boas notas, não gostasse mais da escola, chegando até a não querer mais frequentá-la.
As violências seguiram até a sétima série. Momento que ele pondera que os outros cresceram e “começaram a ser mais bonzinhos”. Paralelo a isso, uma outra parte do grupo já começava a perceber também a sua sexualidade e a serem, ao contrário do que ele tinha passado, queridos por isso. Foi nesse momento que João falou, pela primeira vez, sobre integração na escola. No entanto, já se passavam quatro anos e ele já não queria mais estar naquele lugar.
Enquanto aquele território categorizava o corpo de João, tenuamente, ele se jogava no mundo virtual em busca de uma alternativa. O que parece ter encontrado. Ali, ele poderia se vestir, comprar e viver, com o toque do mouse, sob seu próprio comando. Movimento que garantia, segundo suas palavras, um refúgio, por muitas horas.
O personagem do João nasce no Habbo com um corpo “sempre masculino” e que “sempre buscava raparigas [meninas]” pelos quartos pixelados. Sem lembrar ao certo qual era o seu nome, a memória foi certeira quanto às características virtuais: calças largas, camisetas, cabelo partido ao meio, óculos - quando possível - e tênis. Essas características também me foram muito marcantes e visíveis quando o vi, pela primeira vez, nos corredores de uma universidade no Alentejo, em Portugal.
A vida virtual se dividia com as horas lendo, em casa e na escola. A literatura, em alguns pontos, até se conectava com o jogo. João passava boa parte do tempo em quartos do Habbo que faziam menção a Hogwarts - uma escola de magia que aparece na série de livros e filmes de Harry Potter. As aventuras no mundo virtual, meio incertas na memória dele, foram acompanhadas, por seis meses, por uma garota brasileira com quem conversava.
Ele me conta, com sorriso no rosto, que conversava todos os dias com essa garota - “se é que de facto era uma rapariga [garota]”, conta. Ele ia até o jogo buscar várias vezes pelos papos com ela. Foi nesse momento que ele percebe ter tido um encontro com a questão da sua sexualidade - sobre a idade, ele diz que tinha por volta dos 12 anos. Olhando para o passado, João diz que são “sinais que já podiam ser percebidos”.
Sinais esses que mostram, de acordo com João, um exemplo de como o jogo abre possibilidades. Jamais na vida real, eu teria capacidade para me expressar assim. Aliás, até tinha medo”.








Sem muita certeza quanto à idade, João se lembra que começou na vida habbiana quando ainda estava entrando no quinto ano da escola, em Portugal. Ele usa da memória do ano escolar para dar uma proximidade da idade: “devia ter cerca de nove, oito anos”. À época, além de ter que enfrentar, em família, um câncer que acometia a mãe, ele narra diversos enfrentamentos e encruzilhadas pessoais que, hoje, fazem parte do seu corpo.
Até chegar a esse momento, João vivia com a mãe e a irmã, oito anos mais velha. Do período na vila portuguesa de Póvoa de Santa Iria - distrito de Lisboa, ele se lembra ainda que tinha boas amizades, mas “nada muito profundo”. Se definindo inicialmente como uma criança muito reservada, logo em seguida ele se diz num lugar de ser e não-ser em comparação com as demais crianças: “não é que eu fosse diferente das outras crianças, mas ao mesmo tempo era, porque não havia mais ninguém como eu, pelo menos no espaço em que eu cresci”.
Um dos motivos dos motivos desse questionamento é que ele “só queria brincar com os rapazes”, o que seria sugestivamente abjeto à percepção dos outros. Na diferença, João conta que sua irmã era quem sabia tudo sobre ele. Foi com ela que houve os papos sobre sexualidade e, mais adiante, identidade de gênero. E quando isso não era sequer questão percebida, ela era território de acolhimento e proteção.
Com o câncer da mãe e com a irmã indo para Luxemburgo cursar o ensino superior, João foi para a casa dos tios em Catujal, vila também dentro do distrito de Lisboa - capital de Portugal. Por ter subido de série, ele foi acompanhado de um computador que, em tese, serviria para os estudos. “Todas as pessoas de confiança com quem eu podia ser eu, não é? E não ter medo de me expressar, não estavam comigo”, relembra.
Na casa do João, ele sequer pensava em ter um quarto cor de rosa, mas, na tia, todo o espaço era tomado pela cor e por tudo que fosse percebido como artefato feminino. “Eu tinha o colchão da cama cor de rosa, as fronhas cor de rosa, nas paredes tinha coisas cor de rosa, era tudo cor de rosa naquele quarto, tudo que tentavam dar era cor de rosa. Ou seja, parecia que eu não podia escolher, até podia ser roxo, mas não posso escolher outra cor, tem que ser tudo cor de rosa”, desabafa.
João me conta que a visão feminina da tia o atravessava de todas as formas. Até chegar ao nono ano na escola, ele não tinha muita palavra sobre o que poderia vestir, ou não. Era o que a tia dava, os presentes de natal de outros parentes e pronto. A mãe até tentava comprar aquilo que ele queria, mas pela condição, que a impossibilitava de trabalhar, a falta do dinheiro atrapalhava nessa ajuda. “Coisas de género [gênero]”.
Tais coisas também começaram a refletir além das paredes da casa de João. Com a mudança de escola, ele começou a sofrer mais violências por causa da diferença entre suas escolhas e o que esperavam dele: “gozavam por tudo, porque eu queria jogar bola, porque eu me vestia mais como rapaz”. João fez questão de marcar que o momento foi horrível e complicado, fazendo com que, mesmo com boas notas, não gostasse mais da escola, chegando até a não querer mais frequentá-la.
As violências seguiram até a sétima série. Momento que ele pondera que os outros cresceram e “começaram a ser mais bonzinhos”. Paralelo a isso, uma outra parte do grupo já começava a perceber também a sua sexualidade e a serem, ao contrário do que ele tinha passado, queridos por isso. Foi nesse momento que João falou, pela primeira vez, sobre integração na escola. No entanto, já se passavam quatro anos e ele já não queria mais estar naquele lugar.
Enquanto aquele território categorizava o corpo de João, tenuamente, ele se jogava no mundo virtual em busca de uma alternativa. O que parece ter encontrado. Ali, ele poderia se vestir, comprar e viver, com o toque do mouse, sob seu próprio comando. Movimento que garantia, segundo suas palavras, um refúgio, por muitas horas.
O personagem do João nasce no Habbo com um corpo “sempre masculino” e que “sempre buscava raparigas [meninas]” pelos quartos pixelados. Sem lembrar ao certo qual era o seu nome, a memória foi certeira quanto às características virtuais: calças largas, camisetas, cabelo partido ao meio, óculos - quando possível - e tênis. Essas características também me foram muito marcantes e visíveis quando o vi, pela primeira vez, nos corredores de uma universidade no Alentejo, em Portugal.
A vida virtual se dividia com as horas lendo, em casa e na escola. A literatura, em alguns pontos, até se conectava com o jogo. João passava boa parte do tempo em quartos do Habbo que faziam menção a Hogwarts - uma escola de magia que aparece na série de livros e filmes de Harry Potter. As aventuras no mundo virtual, meio incertas na memória dele, foram acompanhadas, por seis meses, por uma garota brasileira com quem conversava.
Ele me conta, com sorriso no rosto, que conversava todos os dias com essa garota - “se é que de facto era uma rapariga [garota]”, conta. Ele ia até o jogo buscar várias vezes pelos papos com ela. Foi nesse momento que ele percebe ter tido um encontro com a questão da sua sexualidade - sobre a idade, ele diz que tinha por volta dos 12 anos. Olhando para o passado, João diz que são “sinais que já podiam ser percebidos”.
Sinais esses que mostram, de acordo com João, um exemplo de como o jogo abre possibilidades. Jamais na vida real, eu teria capacidade para me expressar assim. Aliás, até tinha medo”.








Do outro lado do oceano, aqui no território brasileiro-goiano, as coisas parecem ter sido, em alguns aspectos, um pouco diferentes para Jordana.
Um e-mail chegou! Em 2012, foi assim que Jordana foi parar no mundo dos pixels habbianos. Um clique ali, e outro aqui, e ela tinha lá seu quartinho minúsculo, quase como “um apartamento em São Paulo”. Jordana tinha 13 anos, mas já contava com um espaço só para ela: uma mesa, uma cadeira, o seu pet, Gionel, e uma caminha para ele. Nesse primeiro momento, a única preocupação diante do jogo era arrumar comida para Gionel, criar um personagem e andar de um lado para o outro.
“Estilo alma penada”, como me conta, ela passava pelos quartos e conversava bem pouco. A ressalva dela era quanto a uma possibilidade - na sua cabeça - de ser sequestrada, mesmo pelo computador… coisas de uma criança com medo na internet. Entre as observadas, ela deixou o jogo para acessar uma versão pirata, que fornecia moedas grátis de tempos em tempos. A decisão veio ao perceber que outros usuários VIP tinham mais acessos dentro do jogo, o que de fato ocorre. São visuais, mobílias, todo um status construído a partir disso. Alguns os chamavam de socialites - na ironia, enquanto quem não possui os adereços pagos, são categorizados como bacons.
Na nova vida, agora parte da alta sociedade, Jordana começou a explorar mais. Com frequência, diz ter acessado salas onde aconteciam competições para montagem de personagens. Mais especialmente, ela lembra de uma festa da Liga da Justiça. Montada de Canário Negro, a primeira interação que ela me conta ter tido no jogo foi para bater boca com outra Canário, que dizia estar mais parecida com a personagem do que ela.
Para além da montagem dos personagens, o avatar de Jordana rondava pelos quartos com roupas predominantemente femininas, o que segue até hoje em qualquer jogo em que ela esteja. Olhando para o passado, questionei sobre o que ela achava dessa escolha. Ela logo diz, sem pensar muito: “na época eu não sabia, mas hoje em dia, eu acredito que era mais um processo de auto-identificação”.
Todo dia um cabelo diferente. Uma cor diferente. Saia diferente. Mas o decotão… de acordo com ela estava sempre presente. A escolha era acompanhada de uma roupa que realçava os peitos da personagem também. Sem muitas limitações, até o visual de alienígena poderia rolar de acordo com a vontade do dia.
Na conversa com Jordana, sobre sua vida pixelada em nenhum momento, a escolha no jogo virtual parece ter causado incômodo aos pais e, principalmente, ao irmão - que dividia o computador com ela, hora após hora. A possibilidade, de acordo com ela, vem de uma família que a apoiou nas suas decisões, o que fez com que hoje se sinta acolhida e respeitada por ser quem é.
Apesar desse “privilégio” em casa, questões sobre a sua vida ainda faziam com que ela percebesse que: “era só ela, por ela”. E isso foi até o final do ensino médio, momento em que Jordana se permitiu conhecer mais gente. Longe do Habbo, já nessa época, as questões de uma vida adolescente faziam com que, além de buscar por novas pessoas no mundo real, ela ainda preservasse suas primeiras amigas da internet. Agora, em outro jogo de simulação virtual.







Do outro lado do oceano, aqui no território brasileiro-goiano, as coisas parecem ter sido, em alguns aspectos, um pouco diferentes para Jordana.
Um e-mail chegou! Em 2012, foi assim que Jordana foi parar no mundo dos pixels habbianos. Um clique ali, e outro aqui, e ela tinha lá seu quartinho minúsculo, quase como “um apartamento em São Paulo”. Jordana tinha 13 anos, mas já contava com um espaço só para ela: uma mesa, uma cadeira, o seu pet, Gionel, e uma caminha para ele. Nesse primeiro momento, a única preocupação diante do jogo era arrumar comida para Gionel, criar um personagem e andar de um lado para o outro.
“Estilo alma penada”, como me conta, ela passava pelos quartos e conversava bem pouco. A ressalva dela era quanto a uma possibilidade - na sua cabeça - de ser sequestrada, mesmo pelo computador… coisas de uma criança com medo na internet. Entre as observadas, ela deixou o jogo para acessar uma versão pirata, que fornecia moedas grátis de tempos em tempos. A decisão veio ao perceber que outros usuários VIP tinham mais acessos dentro do jogo, o que de fato ocorre. São visuais, mobílias, todo um status construído a partir disso. Alguns os chamavam de socialites - na ironia, enquanto quem não possui os adereços pagos, são categorizados como bacons.
Na nova vida, agora parte da alta sociedade, Jordana começou a explorar mais. Com frequência, diz ter acessado salas onde aconteciam competições para montagem de personagens. Mais especialmente, ela lembra de uma festa da Liga da Justiça. Montada de Canário Negro, a primeira interação que ela me conta ter tido no jogo foi para bater boca com outra Canário, que dizia estar mais parecida com a personagem do que ela.
Para além da montagem dos personagens, o avatar de Jordana rondava pelos quartos com roupas predominantemente femininas, o que segue até hoje em qualquer jogo em que ela esteja. Olhando para o passado, questionei sobre o que ela achava dessa escolha. Ela logo diz, sem pensar muito: “na época eu não sabia, mas hoje em dia, eu acredito que era mais um processo de auto-identificação”.
Todo dia um cabelo diferente. Uma cor diferente. Saia diferente. Mas o decotão… de acordo com ela estava sempre presente. A escolha era acompanhada de uma roupa que realçava os peitos da personagem também. Sem muitas limitações, até o visual de alienígena poderia rolar de acordo com a vontade do dia.
Na conversa com Jordana, sobre sua vida pixelada em nenhum momento, a escolha no jogo virtual parece ter causado incômodo aos pais e, principalmente, ao irmão - que dividia o computador com ela, hora após hora. A possibilidade, de acordo com ela, vem de uma família que a apoiou nas suas decisões, o que fez com que hoje se sinta acolhida e respeitada por ser quem é.
Apesar desse “privilégio” em casa, questões sobre a sua vida ainda faziam com que ela percebesse que: “era só ela, por ela”. E isso foi até o final do ensino médio, momento em que Jordana se permitiu conhecer mais gente. Longe do Habbo, já nessa época, as questões de uma vida adolescente faziam com que, além de buscar por novas pessoas no mundo real, ela ainda preservasse suas primeiras amigas da internet. Agora, em outro jogo de simulação virtual.







Não muito diferente, o Habbo também foi um início de possibilidades para o Jonas, lá em 2008. Mesmo com oito anos de idade, rompendo com a recomendação indicativa para o jogo, ele adentrou ao universo habbiano, assim como outras plataformas de redes sociais. Afinal, para ele, era normal que nós, jovens hoje e crianças naquela época, burlásemos algumas regrinhas para estar no mundo virtual.
O Habbo estava em alta na época, e Jonas conheceu o jogo por meio das publicidades que ocupavam quase todos os lugares das ruas e estabelecimentos. Era revista, caixa de cereal, e até mesmo a rede de restaurantes Giraffas. Você comia o lanche sobre um papelzinho com vários detalhes daquele mundo pixelado - eu particularmente pedia a minha mãe me levar só para ter os papéis. Durante um tempo, guardava várias coleções numa gaveta do guarda-roupa do meu quarto.
Apesar de todos os estímulos para mergulhar no jogo, foi somente com a indicação de um primo - que no futuro passou a jogar com ele - que, de fato, o Jonas também criou um corpo e um personagem no mundo virtual. Mesmo com a internet regrada pelos pais em casa, ele ainda conseguia fazer com que os acessos, por exemplo, ao Habbo, não fossem motivo de tanta preocupação. “Viam uns bonequinhos ali coloridos, coisa infantil, e, tipo, passava”.
No entanto, o irmão era quem o impedia de curtir as longas horas seguidas no computador, o que se tornou um hábito mais no futuro. Assim como Jordana, de hora em hora ele dividia o computador para jogar. E claro, nesse movimento, os irmãos trocavam informações sobre jogos. Jonas decidiu continuar pelo mundo virtual, enquanto o irmão ia por outros caminhos.
Jogando até hoje, com uma frequência bem menor, eu conheci ele no auge do mundo pixelado. Nunca soube como ele era de fato, até nos aproximarmos mais depois de quase dois anos jogando. O que nos levou a nos encontrar bastante foi um grupo em que ouvíamos músicas populares americanas, até o underground, na plataforma plug.dj - um antigo site em que era possível reproduzir músicas conforme uma lista de participantes em grupos fechados e abertos. Nessa época, eu ainda nem sabia como era seu rosto.
Ele e outros amigos me apresentaram o que gostaria de chamar aqui de “o lado creepy da vida”, a liberdade de ser eStRaNhO. Por sinal, foi uma creepypasta - lendas de terror compartilhadas na internet - do Habbo que nos aproximou.
Foi descobrindo o rosto dele e vendo um garoto sem aparente certeza e sem questionamentos quanto a sexualidade ou gênero - assim como eu - se vestir de uma forma bizarramente legal e chamativa que comecei a pensar: bom, além de um personagem altamente feminino, acho que tenho a possibilidade também de criar avatares sem um referencial de gênero, mas que ilustre toda a anormalidade com a qual a vida real me lê o dia todo, o tempo todo. Isso é o que eu analiso hoje. À época, isso nem se passava na minha cabeça de criança.
Andei várias vezes me inspirando também nas suas criações. Ele andava com um cabelo que marcava a diferença dos looks, todos coloridos e cheios de peças que, em um primeiro momento, é perceptível que não poderia dar certo. E que, de fato, dependendo dos filtros dos olhos, chegam a ser um pouco limitados. Mas, no final, ele sempre entregava algo absurdamente fora da curva. Eu tentava copiar, da minha forma.
Assim foram os dias, durante muitos anos, até que as questões sobre a nossa sexualidade, a nossa voz, a forma como conversávamos e as referências que tínhamos passaram a ser também um ponto de discussões não tão fervorosas como hoje, que ainda julgo não ser tanto - algo que é lidado com mais naturalidade depois de algumas discussões. Mas, que marcaram o que de fato o mundo nos entregou até mesmo antes de nós: GAYS!







Não muito diferente, o Habbo também foi um início de possibilidades para o Jonas, lá em 2008. Mesmo com oito anos de idade, rompendo com a recomendação indicativa para o jogo, ele adentrou ao universo habbiano, assim como outras plataformas de redes sociais. Afinal, para ele, era normal que nós, jovens hoje e crianças naquela época, burlásemos algumas regrinhas para estar no mundo virtual.
O Habbo estava em alta na época, e Jonas conheceu o jogo por meio das publicidades que ocupavam quase todos os lugares das ruas e estabelecimentos. Era revista, caixa de cereal, e até mesmo a rede de restaurantes Giraffas. Você comia o lanche sobre um papelzinho com vários detalhes daquele mundo pixelado - eu particularmente pedia a minha mãe me levar só para ter os papéis. Durante um tempo, guardava várias coleções numa gaveta do guarda-roupa do meu quarto.
Apesar de todos os estímulos para mergulhar no jogo, foi somente com a indicação de um primo - que no futuro passou a jogar com ele - que, de fato, o Jonas também criou um corpo e um personagem no mundo virtual. Mesmo com a internet regrada pelos pais em casa, ele ainda conseguia fazer com que os acessos, por exemplo, ao Habbo, não fossem motivo de tanta preocupação. “Viam uns bonequinhos ali coloridos, coisa infantil, e, tipo, passava”.
No entanto, o irmão era quem o impedia de curtir as longas horas seguidas no computador, o que se tornou um hábito mais no futuro. Assim como Jordana, de hora em hora ele dividia o computador para jogar. E claro, nesse movimento, os irmãos trocavam informações sobre jogos. Jonas decidiu continuar pelo mundo virtual, enquanto o irmão ia por outros caminhos.
Jogando até hoje, com uma frequência bem menor, eu conheci ele no auge do mundo pixelado. Nunca soube como ele era de fato, até nos aproximarmos mais depois de quase dois anos jogando. O que nos levou a nos encontrar bastante foi um grupo em que ouvíamos músicas populares americanas, até o underground, na plataforma plug.dj - um antigo site em que era possível reproduzir músicas conforme uma lista de participantes em grupos fechados e abertos. Nessa época, eu ainda nem sabia como era seu rosto.
Ele e outros amigos me apresentaram o que gostaria de chamar aqui de “o lado creepy da vida”, a liberdade de ser eStRaNhO. Por sinal, foi uma creepypasta - lendas de terror compartilhadas na internet - do Habbo que nos aproximou.
Foi descobrindo o rosto dele e vendo um garoto sem aparente certeza e sem questionamentos quanto a sexualidade ou gênero - assim como eu - se vestir de uma forma bizarramente legal e chamativa que comecei a pensar: bom, além de um personagem altamente feminino, acho que tenho a possibilidade também de criar avatares sem um referencial de gênero, mas que ilustre toda a anormalidade com a qual a vida real me lê o dia todo, o tempo todo. Isso é o que eu analiso hoje. À época, isso nem se passava na minha cabeça de criança.
Andei várias vezes me inspirando também nas suas criações. Ele andava com um cabelo que marcava a diferença dos looks, todos coloridos e cheios de peças que, em um primeiro momento, é perceptível que não poderia dar certo. E que, de fato, dependendo dos filtros dos olhos, chegam a ser um pouco limitados. Mas, no final, ele sempre entregava algo absurdamente fora da curva. Eu tentava copiar, da minha forma.
Assim foram os dias, durante muitos anos, até que as questões sobre a nossa sexualidade, a nossa voz, a forma como conversávamos e as referências que tínhamos passaram a ser também um ponto de discussões não tão fervorosas como hoje, que ainda julgo não ser tanto - algo que é lidado com mais naturalidade depois de algumas discussões. Mas, que marcaram o que de fato o mundo nos entregou até mesmo antes de nós: GAYS!







Na mesma oportunidade, sem titubear, o corpo de Ygor era também marcado como aberrante, antes mesmo que ele soubesse que desviava da normatividade. As “várias questões internas” que carrega foram se desenrolando ao longo dos anos por meio de uma tela e de pessoas muito mais velhas do que ele, uma criança de apenas nove, dez anos. O Habbo foi também um refúgio quando, por exemplo, a escola não conseguia lidar com seu direito de ter escolhas diferentes dos demais.
Ygor conheceu o jogo por meio de um amigo da família, que passou para o mundo virtual no pc de sua casa. Jovem e com uma oportunidade para matar o tempo, o Habbo se torna uma possibilidade para os dias, tardes e até noites da vida dele, durante um tempo. A princípio, a vida habbiana sequer era para socialização ou criação de relações profundas, afinal, de acordo com Ygor, ele só era uma criança. Ele só queria jogar nos labirintos.
Os outros meninos só gostavam de futebol e brincar na rua, o que também não era muito a “praia” dele. Ygor estava deslocado e não se encaixava. O conflito o levava a se questionar se, por sua personalidade diferente dos demais, teria um problema com a aparência, por exemplo. Quando conversamos, era Dia das Crianças. Com muita convicção, me disse que praticamente não teria nenhuma foto para compartilhar nesse dia. Ele vivia uma maratona para longe dos registros.
Tudo isso se passava por que, ao mesmo tempo em que ele não sabia o que era, o mundo estava ali o marcando, de várias formas possíveis. Mas era nítido para Ygor que o grupo padrão de meninos não fazia parte do que ele havia escolhido no momento. Era medo e vergonha da aparência, como se ela se juntasse à personalidade num conjunto só.
Assim, o legal do Habbo passou a ser também a possibilidade de criar vários avatares, o que poderia fazer com que ele não precisasse sempre ser uma pessoa só. Numa versão pirata do jogo, na possibilidade de ter mais roupas, o avatar feminino de Ygor não era somente um movimento de pixelvestir-se. No começo, ele até fingia ser uma mulher, ou outra pessoa qualquer. Era levada ao pé da letra a possibilidade. E era divertido, ele podia se aventurar, a cabeça fluía e a vida seguia.
Cerca de dois anos após ter iniciado o seu avatar no jogo, outras responsabilidades chegaram, mas a prioridade na vida de Ygor era o jogo. Ora, o aberrante da escola agora ficava no quarto jogando, era mais confortável estar ali no mundo virtual do que ter de voltar à escola. Qual sentido faria escolher estar ali com “aquela galera” que nem sabia nada sobre ele, quando “a comunidade” o conhecia melhor? Das sexualidades aos gostos, os amigos sabiam. Na escola, nem a voz dele ouviam. Assim, o Habbo passou a ser prioridade na vida do Ygor, por muito tempo.






Na mesma oportunidade, sem titubear, o corpo de Ygor era também marcado como aberrante, antes mesmo que ele soubesse que desviava da normatividade. As “várias questões internas” que carrega foram se desenrolando ao longo dos anos por meio de uma tela e de pessoas muito mais velhas do que ele, uma criança de apenas nove, dez anos. O Habbo foi também um refúgio quando, por exemplo, a escola não conseguia lidar com seu direito de ter escolhas diferentes dos demais.
Ygor conheceu o jogo por meio de um amigo da família, que passou para o mundo virtual no pc de sua casa. Jovem e com uma oportunidade para matar o tempo, o Habbo se torna uma possibilidade para os dias, tardes e até noites da vida dele, durante um tempo. A princípio, a vida habbiana sequer era para socialização ou criação de relações profundas, afinal, de acordo com Ygor, ele só era uma criança. Ele só queria jogar nos labirintos.
Os outros meninos só gostavam de futebol e brincar na rua, o que também não era muito a “praia” dele. Ygor estava deslocado e não se encaixava. O conflito o levava a se questionar se, por sua personalidade diferente dos demais, teria um problema com a aparência, por exemplo. Quando conversamos, era Dia das Crianças. Com muita convicção, me disse que praticamente não teria nenhuma foto para compartilhar nesse dia. Ele vivia uma maratona para longe dos registros.
Tudo isso se passava por que, ao mesmo tempo em que ele não sabia o que era, o mundo estava ali o marcando, de várias formas possíveis. Mas era nítido para Ygor que o grupo padrão de meninos não fazia parte do que ele havia escolhido no momento. Era medo e vergonha da aparência, como se ela se juntasse à personalidade num conjunto só.
Assim, o legal do Habbo passou a ser também a possibilidade de criar vários avatares, o que poderia fazer com que ele não precisasse sempre ser uma pessoa só. Numa versão pirata do jogo, na possibilidade de ter mais roupas, o avatar feminino de Ygor não era somente um movimento de pixelvestir-se. No começo, ele até fingia ser uma mulher, ou outra pessoa qualquer. Era levada ao pé da letra a possibilidade. E era divertido, ele podia se aventurar, a cabeça fluía e a vida seguia.
Cerca de dois anos após ter iniciado o seu avatar no jogo, outras responsabilidades chegaram, mas a prioridade na vida de Ygor era o jogo. Ora, o aberrante da escola agora ficava no quarto jogando, era mais confortável estar ali no mundo virtual do que ter de voltar à escola. Qual sentido faria escolher estar ali com “aquela galera” que nem sabia nada sobre ele, quando “a comunidade” o conhecia melhor? Das sexualidades aos gostos, os amigos sabiam. Na escola, nem a voz dele ouviam. Assim, o Habbo passou a ser prioridade na vida do Ygor, por muito tempo.






A possibilidade de se recriar no jogo permitiu que diversos usuários passassem anos pelos corredores, sem que os demais soubessem, de fato, como eram as características físicas de seus colegas fora das telas.
No caso do João, não pela opção de respeitar a Habbo Etiqueta, mas pela insegurança de apresentar um rosto que ainda não condiz com a sua identidade, os amigos e amigas que fez pelos jogos sequer tiveram acesso a algo tão íntimo para ele: seu corpo real. Apesar do Habbo não estar mais dentre a rotina de jogos dele, a história ainda acaba se repetindo, em outras plataformas.
O problema de crescimento que João pontua é em relação a sua voz. Ao contrário do Habbo Hotel, no jogo GTA Role Play, também na estrutura multiplayer, há a possibilidade de interagir com outros usuários por meio do bate-papo por voz. Durante o tempo que tem passado na plataforma, ele enfrenta questionamentos quanto à sonoridade e a forma que sua voz tem chegado aos demais. Apesar de não haver um questionamento explícito sobre o “gênero” dele, a situação se desenrola sob uma perspectiva de que ele teria uma “puberdade retardada”. Tanto a voz quanto a aparência “de um puto [pirralho] de 15 anos” são alguns pontos que o levaram, por exemplo, a decidir iniciar a sua transição de gênero.
O medo estava presente também em casa. Mesmo com um personagem masculino e com a possibilidade de flertar com garotas, João temia que, a qualquer momento, alguém pudesse chegar no quarto, flagrar a sua diversão e o repreender.
Quando falei sobre o medo que eu tinha de ser surpreendido pelos meus pais, por causa do meu personagem feminino no jogo, ele logo disse que passava por algo igual: “às vezes, a minha tia ia lá deixar a roupa e eu só fechava o computador, ficava com medo, calava-me ou abria um separador [guia do navegador] diferente qualquer”.
Foi conversando com o João que descobri que seus primos também jogavam Habbo, mas, aparentemente, passavam o tempo com preocupações bem diferentes do garoto. Mesmo se divertindo, o medo rondou os anos entre o personagem e a vida real dele, não por conta do acesso por si só àquele mundo virtual, mas sim pela possibilidade, grátis e fácil, de (re)montar todo um universo que não podia ser construído fora da tela do computador. Ainda.
Por um tempo, por causa do medo, ninguém conseguia conversar com Jordana fora do jogo. Contato por redes sociais, skype que seja? Além de não ser incentivada pela Habbo Etiqueta, ela não buscava uma forma de burlar a regra para ter um contato fora do jogo. Qualquer tentativa de interação com ela já era motivo para alguém ser bloqueado, denunciado e até levá-la a apagar sua conta e criar outra. Com esse filtro, durante anos, a comunicação “digitada” era um dos critérios para Jordana escolher estar em um jogo, ou não.
A voz, para ela, também era um problema. Conversando, percebi que, por esse motivo, sequer jogos multiplayer, no passado, eram tão acessados. Em especial, os que continham a opção de comunicação via microfone eram extremamente evitados. Quando recorreu a esses novos jogos, o tom agudo de sua voz era considerado por outras pessoas que estavam jogando como algo “diferente” do que esperavam do personagem. O que gerava, na cabeça de Jordana, uma grande questão.
Ela diz não ter passado por algo mais grave, por parte dos outros. Mas, consigo mesma, forçar a voz “tirando as tripas” fazia parte da rotina dela, quando precisava. Todas essas movimentações vinham do medo “de represálias, medo de ser julgada, medo de não fazer amizades”. Assim, Jordana fazia com que todos achassem que ela era outra pessoa.
Após um tempo fechada nesse lugar, a mãe aparece como uma figura importante para novos passos na vida dela: “que palhaçada é essa? Sua voz não é essa, usa a que você tem”. Para além disso, ela me conta que veio também um sentimento pessoal de: “foda-se, a vida é minha”. Foi uma mudança.
Mudança essa reforçada pelo período da pandemia da Covid-19 quando, isolada, ela retornou ao mundo virtual para socializar “de alguma maneira”. Foi aí que, em outros jogos, começou a conhecer mais gente, criar vínculos e trocar números. A criar um ciclo maior de amizades virtuais.
O novo passo na vida de Jordana “faz parte do amadurecimento”. Ao invés do que se tinha antes, o pensamento é direcionado para ocupação do mundo com seu corpo, janela para o que existe sob sua pele. O amadurecimento trouxe a identificação com outras pessoas no mundo das comunidades virtuais e, acima de tudo, a aceitação da possibilidade de ser amada.
Longe de evitar o contato, depois disso, nasce uma Jordana que dá um salto rumo à vida no streaming. Mesmo não interessada, no início, ao jogar GTA Roleplay, ela foi incentivada pelas amigas por ser engraçada, e decidiu fazer lives. Claro que o processo não foi tão simples, foi “toda uma enrolação” com webcam e computador até mostrar seu rosto no mundo como a personagem TaniaTentasion, na Twitch.
E de cem seguidores, hoje ela reúne uma comunidade de quase oitocentas e cinquenta pessoas na plataforma, que é o local da “palhaçada", conforme me conta rindo. As lives são dinâmicas, ela diz que toca música, anima as pessoas e faz o seu show, do seu jeito. Longe de entregar um conteúdo de “jogar por jogar” ela quis fazer do seu lugar, um programa legal, “algo que fizesse as pessoas dizerem: nossa, isso aqui é muito bom, você tem que assistir!". Foi exatamente assim que, para além dos corredores da faculdade, eu conheci o conteúdo de Jordana.
Hoje, as lives não são mais tão importantes como antes. Jordana diz que parou após arrumar um emprego. A pausa para estudar, aprender e depois voltar está aí. Com um computador próprio, agora, ela diz abrir lives, mais ou menos, quando dá. Enquanto a gente espera pela sua decisão, o canal não para. Se você acessar a comunidade na Twitch, pode facilmente assistir a outros streamers, na própria página da Tentasion. Na minha última visita, acabei caindo direto em um canal categorizado como LGBTQIAPN+ sugerido pelo seu perfil. Descobri aí mais um, de nós, nos jogos.
Eles são pontes comunicativas muito importantes. Jonas e Ygor foram essas figuras bem significativas até hoje na minha vida e que foram conhecidas a partir da vida virtual. Mesmo que, à época, no caso de Jonas, ele tratasse da vestimenta feminina com normalidade no jogo, e isso fosse algo incogitável na vida real, foi só a partir da construção de alguns laços que eu pude perceber que isso também se passava no meu mundo real.
Em alguns pontos, é até um dilema dicotômico, mas quando se fala sobre quem era o dono do avatar escandalosamente eStRaNhO, as coisas são bem separadas. No virtual, o Jonas via uma possibilidade de liberdade muito maior do que nas outras atividades chatas do dia-a-dia. A liberdade se casa com um ponto importante para ele: o julgamento das pessoas.
Por mais que Jonas marcasse essa diferença entre os dois mundos, pelo perfil conversador, ele ainda garantia que alguém soubesse algo sobre a sua vida no mundo real, mas com informações reservadas, omitindo, ou não contando tudo. Por outro lado, no abrir do computador, era hora do “foda-se” - desculpe o termo, como ele mesmo colocou após soltar a palavra.
Sabia-se muito sobre ele, mas pouco sobre quem contava isso tudo. A grande questão, por um tempo, era que Jonas via muita malícia na intenção das pessoas, seja em qualquer dos mundos. O que chegou a delimitar um pouco o seu limite quanto a identidade virtual. Após um tempo, “não mais qualquer um”, mas poucos passaram a conhecer Jonas como ele era fora dali, quando decidia se desligar do jogo e manter o contato ainda com o pessoal.
Com o círculo de amigos feito e todo mundo se conhecendo, era do jogo até uma rede social a mais. O que passava também por algo muito importante: a troca de mensagens. Assim, ele conta que chegou a um ponto de construir grupos em aplicativos de troca de mensagens instantâneas com várias das outras pessoas que conheceu pelo mundo habbiano. Ele era conhecido por quem já conversava, e se mostrar já não era, e foi, tanto uma questão.
Eu, Ygor e uma colega estamos em um desses grupos com Jonas há mais de nove anos. Ele leva o nome de um álbum da cantora Grimes, que ouvíamos muito enquanto jogávamos juntos.
Daquela época até então, o Ygor já mudou muito. Antes, não dava para saber que, quando nos conhecemos, ele era uma criança bem mais nova. Ele se portava como um adolescente bem formado, e conseguiu nos enganar. No entanto, foi somente aos quinze ou dezesseis anos, que viemos a conhecer qual era o rosto daquela pessoa que também falava tanto com a gente.
Nós sabíamos que ele era um homem, mas muitas pessoas que interagiam com aquele avatar feminino não tiveram essa oportunidade. Isso não era tão importante, até mesmo para ele, que sequer atrelava a sua imagem ao avatar: era só mais uma das possibilidades de se criar um personagem. No entanto, antes de ver seu rosto, mais jovem do grupo, “alguns caras” receberam o contato dele e nunca viram uma foto de perfil. Ele removia, claro, mas não mudava. Afinal, alguém da família poderia questionar quem seria aquela mulher na foto.
Todo mundo ali sempre soube, todos fazíamos as mesmas coisas por intenções diferentes. Esse sentimento também foi sentido por ele. Ver o seu rosto era só mais uma das questões formais para estreitar os laços e prosseguir com a amizade, não houve luta nem julgamentos. Ainda crianças, tínhamos medo de ser sequestradas pelo computador. Imagine só, perder o mundo em que poderíamos nos recriar com um clique. Não dava para pisar na bola. Antes de tudo, ainda era a internet, com pessoas por trás dela.















A possibilidade de se recriar no jogo permitiu que diversos usuários passassem anos pelos corredores, sem que os demais soubessem, de fato, como eram as características físicas de seus colegas fora das telas.
No caso do João, não pela opção de respeitar a Habbo Etiqueta, mas pela insegurança de apresentar um rosto que ainda não condiz com a sua identidade, os amigos e amigas que fez pelos jogos sequer tiveram acesso a algo tão íntimo para ele: seu corpo real. Apesar do Habbo não estar mais dentre a rotina de jogos dele, a história ainda acaba se repetindo, em outras plataformas.
O problema de crescimento que João pontua é em relação a sua voz. Ao contrário do Habbo Hotel, no jogo GTA Role Play, também na estrutura multiplayer, há a possibilidade de interagir com outros usuários por meio do bate-papo por voz. Durante o tempo que tem passado na plataforma, ele enfrenta questionamentos quanto à sonoridade e a forma que sua voz tem chegado aos demais. Apesar de não haver um questionamento explícito sobre o “gênero” dele, a situação se desenrola sob uma perspectiva de que ele teria uma “puberdade retardada”. Tanto a voz quanto a aparência “de um puto [pirralho] de 15 anos” são alguns pontos que o levaram, por exemplo, a decidir iniciar a sua transição de gênero.
O medo estava presente também em casa. Mesmo com um personagem masculino e com a possibilidade de flertar com garotas, João temia que, a qualquer momento alguém, pudesse chegar no quarto, flagrar a sua diversão e o repreender.
Quando falei sobre o medo que eu tinha de ser surpreendido pelos meus pais, por causa do meu personagem feminino no jogo, ele logo disse que passava por algo igual: “às vezes, a minha tia ia lá deixar a roupa e eu só fechava o computador, ficava com medo, calava-me ou abria um separador [guia do navegador] diferente qualquer”.
Foi conversando com o João que descobri que seus primos também jogavam Habbo, mas, aparentemente, passavam o tempo com preocupações bem diferentes do garoto. Mesmo se divertindo, o medo rondou os anos entre o personagem e a vida real dele, não por conta do acesso por si só àquele mundo virtual, mas sim pela possibilidade, grátis e fácil, de (re)montar todo um universo que não podia ser construído fora da tela do computador. Ainda.
Por um tempo, por causa do medo, ninguém conseguia conversar com Jordana fora do jogo. Contato por redes sociais, skype que seja? Além de não ser incentivada pela Habbo Etiqueta, ela não buscava uma forma de burlar a regra para ter um contato fora do jogo. Qualquer tentativa de interação com ela já era motivo para alguém ser bloqueado, denunciado e até levá-la a apagar sua conta e criar outra. Com esse filtro, durante anos, a comunicação “digitada” era um dos critérios para Jordana escolher estar em um jogo, ou não.
A voz, para ela, também era um problema. Conversando, percebi que, por esse motivo, sequer jogos multiplayer, no passado, eram tão acessados. Em especial, os que continham a opção de comunicação via microfone eram extremamente evitados. Quando recorreu a esses novos jogos, o tom agudo de sua voz era considerado por outras pessoas que estavam jogando como algo “diferente” do que esperavam do personagem. O que gerava, na cabeça de Jordana, uma grande questão.
Ela diz não ter passado por algo mais grave, por parte dos outros. Mas, consigo mesma, forçar a voz “tirando as tripas” fazia parte da rotina dela, quando precisava. Todas essas movimentações vinham do medo “de represálias, medo de ser julgada, medo de não fazer amizades”. Assim, Jordana fazia com que todos achassem que ela era outra pessoa.
Após um tempo fechada nesse lugar, a mãe aparece como uma figura importante para novos passos na vida dela: “que palhaçada é essa? Sua voz não é essa, usa a que você tem”. Para além disso, ela me conta que veio também um sentimento pessoal de: “foda-se, a vida é minha”. Foi uma mudança.
Mudança essa reforçada pelo período da pandemia da Covid-19 quando, isolada, ela retornou ao mundo virtual para socializar “de alguma maneira”. Foi aí que, em outros jogos, começou a conhecer mais gente, criar vínculos e trocar números. A criar um ciclo maior de amizades virtuais.
O novo passo na vida de Jordana “faz parte do amadurecimento”. Ao invés do que se tinha antes, o pensamento é direcionado para ocupação do mundo com seu corpo, janela para o que existe sob sua pele. O amadurecimento trouxe a identificação com outras pessoas no mundo das comunidades virtuais e, acima de tudo, a aceitação da possibilidade de ser amada.
Longe de evitar o contato, depois disso, nasce uma Jordana que dá um salto rumo à vida no streaming. Mesmo não interessada, no início, ao jogar GTA Roleplay, ela foi incentivada pelas amigas por ser engraçada, e decidiu fazer lives. Claro que o processo não foi tão simples, foi “toda uma enrolação” com webcam e computador até mostrar seu rosto no mundo como a personagem TaniaTentasion, na Twitch.
E de cem seguidores, hoje ela reúne uma comunidade de quase oitocentas e cinquenta pessoas na plataforma, que é o local da “palhaçada", conforme me conta rindo. As lives são dinâmicas, ela diz que toca música, anima as pessoas e faz o seu show, do seu jeito. Longe de entregar um conteúdo de “jogar por jogar” ela quis fazer do seu lugar, um programa legal, “algo que fizesse as pessoas dizerem: nossa, isso aqui é muito bom, você tem que assistir!". Foi exatamente assim que, para além dos corredores da faculdade, eu conheci o conteúdo de Jordana.
Hoje, as lives não são mais tão importantes como antes. Jordana diz que parou após arrumar um emprego. A pausa para estudar, aprender e depois voltar está aí. Com um computador próprio, agora, ela diz abrir lives, mais ou menos, quando dá. Enquanto a gente espera pela sua decisão, o canal não para. Se você acessar a comunidade na Twitch, pode facilmente assistir a outros streamers, na própria página da Tentasion. Na minha última visita, acabei caindo direto em um canal categorizado como LGBTQIAPN+ sugerido pelo seu perfil. Descobri aí mais um, de nós, nos jogos.
Eles são pontes comunicativas muito importantes. Jonas e Ygor foram essas figuras bem significativas até hoje na minha vida e que foram conhecidas a partir da vida virtual. Mesmo que, à época, no caso de Jonas, ele tratasse da vestimenta feminina com normalidade no jogo, e isso fosse algo incogitável na vida real, foi só a partir da construção de alguns laços que eu pude perceber que isso também se passava no meu mundo real.
Em alguns pontos, é até um dilema dicotômico, mas quando se fala sobre quem era o dono do avatar escandalosamente eStRaNhO, as coisas são bem separadas. No virtual, o Jonas via uma possibilidade de liberdade muito maior do que nas outras atividades chatas do dia-a-dia. A liberdade se casa com um ponto importante para ele: o julgamento das pessoas.
Por mais que Jonas marcasse essa diferença entre os dois mundos, pelo perfil conversador, ele ainda garantia que alguém soubesse algo sobre a sua vida no mundo real, mas com informações reservadas, omitindo, ou não contando tudo. Por outro lado, no abrir do computador, era hora do “foda-se” - desculpe o termo, como ele mesmo colocou após soltar a palavra.
Sabia-se muito sobre ele, mas pouco sobre quem contava isso tudo. A grande questão, por um tempo, era que Jonas via muita malícia na intenção das pessoas, seja em qualquer dos mundos. O que chegou a delimitar um pouco o seu limite quanto a identidade virtual. Após um tempo, “não mais qualquer um”, mas poucos passaram a conhecer Jonas como ele era fora dali, quando decidia se desligar do jogo e manter o contato ainda com o pessoal.
Com o círculo de amigos feito e todo mundo se conhecendo, era do jogo até uma rede social a mais. O que passava também por algo muito importante: a troca de mensagens. Assim, ele conta que chegou a um ponto de construir grupos em aplicativos de troca de mensagens instantâneas com várias das outras pessoas que conheceu pelo mundo habbiano. Ele era conhecido por quem já conversava, e se mostrar já não era, e foi, tanto uma questão.
Eu, Ygor e uma colega estamos em um desses grupos com Jonas há mais de nove anos. Ele leva o nome de um álbum da cantora Grimes, que ouvíamos muito enquanto jogávamos juntos.
Daquela época até então, o Ygor já mudou muito. Antes, não dava para saber que, quando nos conhecemos, ele era uma criança bem mais nova. Ele se portava como um adolescente bem formado, e conseguiu nos enganar. No entanto, foi somente aos quinze ou dezesseis anos, que viemos a conhecer qual era o rosto daquela pessoa que também falava tanto com a gente.
Nós sabíamos que ele era um homem, mas muitas pessoas que interagiam com aquele avatar feminino não tiveram essa oportunidade. Isso não era tão importante, até mesmo para ele, que sequer atrelava a sua imagem ao avatar: era só mais uma das possibilidades de se criar um personagem. No entanto, antes de ver seu rosto, mais jovem do grupo, “alguns caras” receberam o contato dele e nunca viram uma foto de perfil. Ele removia, claro, mas não mudava. Afinal, alguém da família poderia questionar quem seria aquela mulher na foto.
Todo mundo ali sempre soube, todos fazíamos as mesmas coisas por intenções diferentes. Esse sentimento também foi sentido por ele. Ver o seu rosto era só mais uma das questões formais para estreitar os laços e prosseguir com a amizade, não houve luta nem julgamentos. Ainda crianças, tínhamos medo de ser sequestradas pelo computador. Imagine só, perder o mundo em que poderíamos nos recriar com um clique. Não dava para pisar na bola. Antes de tudo, ainda era a internet, com pessoas por trás dela.















João jogou Habbo até por volta dos 15 anos, quando retornou para a casa da mãe, em Póvoa de Santa Iria - era lá onde ele conhecia boa parte dos amigos e havia construído um vínculo nem tão profundo no passado. Nessa mesma época, ele se expressou sobre a sua sexualidade, o que veio a calhar após um longo processo de seis anos medindo os sentimentos e sensações de outras pessoas.
De volta à casa da mãe e à escola que frequentava, João encontrou todos de uma forma diferente, inclusive ele mesmo: “a sexualidade era uma coisa que se começava a falar”.
Com o passar do tempo, João se mudou para Portalegre para cursar o ensino superior. Foi nesse momento que as perguntas sobre o seu gênero começaram a ser mais frequentes. Nessa mudança, ele lembra de não ter “conhecimento do que era ser transgênero, então nem sequer sabia como aceitar bem o que eu era”. Foi nesse momento que, verbalizar a sua identificação como um rapaz, veio acompanhado de questionamentos sobre uma transição.
As respostas de João sobre o assunto vinham sempre acompanhadas de uma desculpa, como descreve o momento. A justificativa, na real, era sobre algo que ainda o assustava, que era um tabu. Ele procurou um psicólogo e, a partir daí, as coisas começaram a ser vistas de uma forma diferente: “ganhei coragem, não é? percebi que não podia passar a vida a fugir de algo que era inevitável”.
Apesar da busca pessoal, na nova cidade - na região sudeste do país, a sua presença não passava despercebida. João se coloca como novidade na universidade que frequentou durante o primeiro ano. “Isto foi uma loucura”. Nas primeiras aulas, quando tinha no registro civil o seu nome morto, ele conta que um professor chegou a se referir a ele como um rapaz durante as apresentações, e quando chegou a dar um nome antigo, todos ficaram chocados. A situação gerou “um burburinho” durante muito tempo.
Mesmo com um conforto próximo de casa - retornando toda quinta-feira a Lisboa - os contratempos ainda existem e são pertinentes. O apagamento de sua identidade tem acompanhado João até hoje junto da família. Ele diz que, em vinte e quatro anos, além das pessoas mais próximas, aqueles que integram a mesa de natal da família não sabem que ele gosta de mulheres. Chateado e sem vontade de retornar aos eventos familiares, ele se questiona sobre como é visto pela família.
Dentre os questionamentos, há algo muito importante, que vem de anos ao encontro da sua vida: “eu questiono-me, com tantos anos, como é que não perguntam nada”. Com os primos e primas, a situação é diferente: sempre estão a perguntar sobre as namoradas e namorados. Por não pertencer à normatividade, nunca recebeu um tratamento igual aos outros.
João chega a me apresentar um exemplo prático das violências que sofremos no dia a dia em nossas casas. Em um natal qualquer, mesmo sabendo que ele estava com uma namorada, o garoto viu a companheira de um primo ser presenteada pela mãe, enquanto a sua não recebeu nada. Ele conta, aparentemente, buscando um sentido na ação dela e logo diz: “parece que as nossas relações não são levadas a sério como deveriam ser”. Isso tem mudado com o tempo.
Aí vem o sentimento de não ser ninguém, de não ter uma personalidade e uma vida. Aos olhos da família, ele é como uma pessoa jogadora de Playstation e estudante. Não imaginam que ele faça algo a mais na vida. “A minha mãe não podia dizer a ninguém que eu saía à noite, ou muito menos que o meu grupo de amigos era só de rapazes”. E mesmo que isso chegasse até eles, segundo João, não havia interesse porque ele “não era um homem”.
O interesse, de fato, era pela vida dos homens da família, exemplificado por ele pelos primos. João explica sobre mais uma das violências que sofre, e que não são somente da comunidade LGBTQIAPN+: “na opinião deles, mulheres da minha família já deviam é ter um namorado e estar quietas em casa a trabalhar”.
Longe desse pensamento e da lógica normativa da família, João segue. Hoje, ele conta, com certo entusiasmo na voz, sobre os documentos, que foram todos alterados. Ele se formou no ensino superior com o diploma já em seu nome. Documento digno, que só veio após um ato de coragem e, ainda, questionado pelas outras pessoas pela falta de “uma cara cheia de pelos” ou como se já devesse ter feito “quinhentas operações”, ou por, conforme João, não ter tido autorização da parte deles para mudar o nome e gênero no documento.
Em alguns meses, ele começa a sua transição. Apesar dos questionamentos que rondam a cabeça do jovem, a esperança dele ainda segue viva. Ele ainda não sabe como vai ser a relação da família quando for aos natais com uma barba no rosto, mas diz que, no dia que o processo estiver mais evoluído, ele vai ser “uma pessoa muito mais confiante”.
Se jogar no mundo de cabeça erguida é um processo para todos nós, pessoas LGBTQIAPN+. Enquanto o queixo ainda não está preparado para ser exposto - e não buscado - para enfrentar cara a cara as violências do mundo, a gente ainda vive presa. Ou, como Jordana coloca, sob uma máscara. Ela não “fingia ser outras pessoas, mas fisicamente parecia ser outra”. Até os dezenove anos, a garota estava bloqueada e vivendo as violências constantes que marcam, o que arrisco dizer, todos os corpos. Coisas, talvez, da heteronormatividade compulsória.
Para chegar ainda num padrão de “feminilidade exacerbada” ela já até chegou a ficar sem voz. As cordas vocais não aguentaram. Mexe de cá, uma forçada de lá, e sumiu. Tudo isso, para ela, era uma forma de agradar, mesmo dizendo, logo em seguida, que não foi tanto um problema, pois muitos ainda diziam que ela conseguia passar despercebida “em alguns momentos”. Com todos esses movimentos, ela se lembra muito do seu processo, colocado como: amadurecimento.
Olhar e enxergar o movimento em que se refletia nos seus personagens, como no Habbo Hotel, veio a calhar em um momento importante da vida de Jordana: quando as questões de gênero começaram a entrar na sua cabeça. Num outro jogo ainda, constante, do eu por eu, foi por volta dos dezoito anos que ela conheceu alguém que era igual a ela e estas coisas vieram a aflorar. Até então, ela nunca “tinha conhecido ninguém que passava pela mesma situação”. Laura, garota portuguesa, é uma parte importante na vida da Jordana.
Eu a conheci durante a apresentação de um documentário para conclusão do curso da Jordana, numa manhã de início de semana, se não me engano. Apesar do sono, minha cabeça conseguiu fazer e conectar caminhos tão importantes naquele dia, que hoje acho que integram a coluna dorsal da tentativa de escrever esse texto e costurar tantas histórias. Jordana me conta, antes ou depois da história, da importância que Laura teve para novos horizontes da sua vida e para construção do seu vídeo-relato sobre vidas trans.
Laura aparece na vida de Jordana em um grupo de amigas LGBTQIAPN+. Jogando GTA Roleplay. Elas faziam parte da mesma facção de uma cidade. No jogo, elas criaram uma “facção só de mulheres”. Nesse momento, a experiência de jogar e curtir com a amiga ainda não tinha chegado. Ela fazia as atividades que eram propostas pelo jogo com uma outra garota portuguesa, que tinha a mesma disponibilidade de estar online que ela. Foi aí que Jordana se tornou mais uma das “Beths”.
Apresentada e agora parte das garotas, ela notou a Beth 4, mais conversadeira. As Beths começaram a ficar cada vez mais próximas. Foi nesse momento que a quarta “irmã” passou a ter o nome de Laura. Além disso, ela passava também a ter uma história. A cada momento narrado por ela, Jordana ficava mais intrigada. Afinal, até então ela nunca tinha ouvido alguém falar tão proximamente sobre as coisas de gênero.
Quase que num movimento cósmico, ela diz ter sido sentida - e percebida - por Laura. Dentre as explicações sobre o processo dela, a insegurança foi subindo e, dentre horas de jogo, a conversa também foi tomando forma, confiança e segurança. Não ironicamente, é o que a Jordana se lembra: de ter tido espaço para falar e ser ouvida, “eu lembro que ela até me falou: se você tiver alguma dúvida sobre isso, você pode conversar comigo”.
Assim, Laura foi a pessoa que explicou para ela o que é ser uma pessoa transgênero, isso tudo durante a partida de um jogo. O que soltou questões “acorrentadas” e trancadas em mil cadeados, como coloca Jordana. A cada quebra de cadeados, a cada novo passo dado, ela já se sentia capaz de perceber que “pera [espera], eu sou assim?”. Ao mesmo tempo que esses questionamentos tomam parte do cotidiano e agora com um aparente acalanto, eis que se pode tratar de mais um caminho na vida de Jordana, a sua identificação: “nossa, ela é igual a mim!”. Como num quebra-cabeça, essas histórias também foram se encaixando, até que ela pôde dizer que se encontrou, de fato.
Para outros, o Habbo parece ter sido também um lugar para conhecer o mundo pop e ser experimental. Isso, junto com a personalidade conversadeira de Jonas, o permitiram estar no jogo e também dentro de vários grupos e comunidades. Os locais eram certeiros: sempre quartos de conversa. Nesse vai e vem pelos lugares pixelados, e até mesmo extrapolando esse limite do jogo para um fórum ou rede social, a cultura pop americana tomou o olhar dele.
Até como uma questão de estereótipos - como ele mesmo disse -, aos seus doze anos e com a percepção se formando sobre ser gay, isso tomava todo o seu tempo. Curiosidade, muita curiosidade. Era informação sobre uma cultura diferente do que tínhamos acesso aqui no Brasil e, principalmente, num momento em que ele estava entendendo “o que será que eu sou” e o por que da diferença. Foi aí que as baladinhas e quartos de relacionamento LGBTQIAPN+ foram um prato cheio.
Dentro e fora do jogo, Jonas chegava até a trocar ideias com pessoas mais velhas, na tentativa de conhecer mais sobre o mundo. Daí, foi se construindo, além de uma experiência de mundo, o repertório além de uma questão musical, mas rumo a uma estética visual onde, para ele, a figura feminina e a feminilidade sempre estiveram no topo. Citando algumas figuras como Britney Spears e Paris Hilton, Jonas lembra (e me leva ao passado) de que, de fato, para os jovens dos anos dois mil - e com alguns privilégios de acesso - elas eram O MOMENTO.
E isso enche os olhos de uma criança que está com a cabeça, vez ou outra, ligada aos questionamentos sobre a sua sexualidade. Lady Gaga, um vestido de carne. Ser estranha e ainda ser aplaudida. Para o Jonas, até uma pessoa heterossexual, principalmente as garotas, poderiam ver aquilo e falar: é lindo. Para além do charme, para ele, ser estranha e ser ainda aplaudida por isso é o que eleva o sentimento à prática.
Antes mesmo de que isso fosse um pensamento para nós, passar os olhos e ver tantas possibilidades diferentes do que, talvez apenas um sertanejo universitário, revela o potencial imenso de descobrimento que as redes tiveram para alguém que nasceu, foi criado e está no interior também. Mesmo imerso na cultura mineira, ele ainda conseguia levar os olhares ao mundo virtual pela sua possibilidade de ser eStRaNhO, com orgulho.
Assim, se pixelvestir-se no jogo nunca foi tanto uma questão a ser levada por Jonas para fora do mundinho virtual de forma negativa. Os conflitos se davam até mesmo dentro dos próprios quartos do Habbo, e nem tanto por questões de gênero ou sexualidade. Se explicar demais, é daí que vem todos os problemas para ele.
Questionamentos são importantes, principalmente quando fazemos para dentro e com o dever de respondermos a nós mesmos. É a autonomia de ser e enxergar nosso próprio corpo a partir dos nossos olhos. Isso, pois “muitos questionamentos nem são relevantes para nossa sexualidade”, por exemplo. Ygor e eu entramos em uma discussão muito importante quando nos vimos pela primeira vez neste ano para o fechamento desta reportagem: gostar ou não de futebol não deve definir se uma pessoa atende ao espectro da comunidade LGBTQIAPN+.
Às vezes, isso se transforma em monstros tão grandes. Tudo pela incapacidade e preconceito guiados pela heteronormatividade em colocar nos outros a “lupa” rumo às mentalidades e valores de que tudo o que é diverso é eStRaNhO, é abjeto.
eStRaNhOs e desprezíveis... CUIR. O processo é longo e foi, por exemplo, para o Ygor. Antes, era preciso conseguir processar as perguntas que outros faziam no decorrer da vida. Bem como, pensar sobre as perguntas reais que devem ser feitas para nós em todo esse momento que é vivido, sentido e outras tantas coisas mais.
Refúgios. Às vezes, são esses os locais essenciais para se construir o início de uma história quando não se tem mais nada. Seja simplesmente por ter alguém para conversar, para conhecer, para passar o tempo ou talvez nem ser questionado sobre quem você é. É ter dez anos naquela época, como o Ygor, e poder, por exemplo, soltar todos os sentimentos e conversar com alguém que não vai te olhar como anormal. Justo seria isso acontecer no mundo real, mas é sorte termos ainda refúgios em outros mundos.
Ygor me questionou e se questionou sobre algo muito importante: como, dentro de uma plataforma, dez horas se passavam e ele poderia conversar com todos, quando na vida cotidiana, na própria escola, isso não era possível? Eu fiquei em silêncio por um bom tempo. E ele me provou e deu a resposta: é o exemplo nítido da estrutura que foi construída para que os nossos corpos gays, lésbicos, bissexuais, transgêneros, transsexuais, andrógenos,… não se ajustassem. Que fossem horríveis e por isso jogados no submundo, para viver sob toda a vida cotidiana dos outros.
A identidade virtual, sem muitas limitações, deu a volta na vida de muitos e, mais ativamente, na vida do garoto paulista. Mesmo novo, o tempo passou e o jogo foi um divisor de águas. Quando a vida não suportou as suas necessidades, ele teve de trazer vida do virtual para o real.
“Hoje, eu me sinto muito à vontade”, foi uma das últimas coisas que escutei dele durante a entrevista. Mesmo que uma possibilidade tenha sido criada com pessoas à distância, ele pode construir fora do jogo uma comunidade de amigos que o respeitam, fazendo com que sentir-se “muito livre para ser quem sou” não seja mais uma questão como no passado. Liberdade à vida dos outros é o que que ele parece desejar em todo momento que fala sobre a mudança do jogo na vida.
Mudança essa que vaza com o passar do tempo e faz da vida no mundo real também um ponto de encontros. Permitindo, talvez, que depois de um tempo, o retorno a esses refúgios seja para realizar, por exemplo, “um sonho que era de infância”. Ygor não joga mais, mas voltou ao jogo para construir algo que foi o início da sua história habbiana: um labirinto. Ora, nada mais simbólico do que ter nas mãos o poder de construir suas próprias encruzilhadas, não mais refém dos diferentes caminhos criados pelo outro.
João jogou Habbo até por volta dos 15 anos, quando retornou para a casa da mãe, em Póvoa de Santa Iria - era lá onde ele conhecia boa parte dos amigos e havia construído um vínculo nem tão profundo no passado. Nessa mesma época, ele se expressou sobre a sua sexualidade, o que veio a calhar após um longo processo de seis anos medindo os sentimentos e sensações de outras pessoas.
De volta à casa da mãe e à escola que frequentava, João encontrou todos de uma forma diferente, inclusive ele mesmo: “a sexualidade era uma coisa que se começava a falar”.
Com o passar do tempo, João se mudou para Portalegre para cursar o ensino superior. Foi nesse momento que as perguntas sobre o seu gênero começaram a ser mais frequentes. Nessa mudança, ele lembra de não ter “conhecimento do que era ser transgênero, então nem sequer sabia como aceitar bem o que eu era”. Foi nesse momento que, verbalizar a sua identificação como um rapaz, veio acompanhado de questionamentos sobre uma transição.
As respostas de João sobre o assunto vinham sempre acompanhadas de uma desculpa, como descreve o momento. A justificativa, na real, era sobre algo que ainda o assustava, que era um tabu. Ele procurou um psicólogo e, a partir daí, as coisas começaram a ser vistas de uma forma diferente: “ganhei coragem, não é? percebi que não podia passar a vida a fugir de algo que era inevitável”.
Apesar da busca pessoal, na nova cidade - na região sudeste do país, a sua presença não passava despercebida. João se coloca como novidade na universidade que frequentou durante o primeiro ano. “Isto foi uma loucura”. Nas primeiras aulas, quando tinha no registro civil o seu nome morto, ele conta que um professor chegou a se referir a ele como um rapaz durante as apresentações, e quando chegou a dar um nome antigo, todos ficaram chocados. A situação gerou “um burburinho” durante muito tempo.
Mesmo com um conforto próximo de casa - retornando toda quinta-feira a Lisboa - os contratempos ainda existem e são pertinentes. O apagamento de sua identidade tem acompanhado João até hoje junto da família. Ele diz que, em vinte e quatro anos, além das pessoas mais próximas, aqueles que integram a mesa de natal da família não sabem que ele gosta de mulheres. Chateado e sem vontade de retornar aos eventos familiares, ele se questiona sobre como é visto pela família.
Dentre os questionamentos, há algo muito importante, que vem de anos ao encontro da sua vida: “eu questiono-me, com tantos anos, como é que não perguntam nada”. Com os primos e primas, a situação é diferente: sempre estão a perguntar sobre as namoradas e namorados. Por não pertencer à normatividade, nunca recebeu um tratamento igual aos outros.
João chega a me apresentar um exemplo prático das violências que sofremos no dia a dia em nossas casas. Em um natal qualquer, mesmo sabendo que ele estava com uma namorada, o garoto viu a companheira de um primo ser presenteada pela mãe, enquanto a sua não recebeu nada. Ele conta, aparentemente, buscando um sentido na ação dela e logo diz: “parece que as nossas relações não são levadas a sério como deveriam ser”. Isso tem mudado com o tempo.
Aí vem o sentimento de não ser ninguém, de não ter uma personalidade e uma vida. Aos olhos da família, ele é como uma pessoa jogadora de Playstation e estudante. Não imaginam que ele faça algo a mais na vida. “A minha mãe não podia dizer a ninguém que eu saía à noite, ou muito menos que o meu grupo de amigos era só de rapazes”. E mesmo que isso chegasse até eles, segundo João, não havia interesse porque ele “não era um homem”.
O interesse, de fato, era pela vida dos homens da família, exemplificado por ele pelos primos. João explica sobre mais uma das violências que sofre, e que não são somente da comunidade LGBTQIAPN+: “na opinião deles, mulheres da minha família já deviam é ter um namorado e estar quietas em casa a trabalhar”.
Longe desse pensamento e da lógica normativa da família, João segue. Hoje, ele conta, com certo entusiasmo na voz, sobre os documentos, que foram todos alterados. Ele se formou no ensino superior com o diploma já em seu nome. Documento digno, que só veio após um ato de coragem e, ainda, questionado pelas outras pessoas pela falta de “uma cara cheia de pelos” ou como se já devesse ter feito “quinhentas operações”, ou por, conforme João, não ter tido autorização da parte deles para mudar o nome e gênero no documento.
Em alguns meses, ele começa a sua transição. Apesar dos questionamentos que rondam a cabeça do jovem, a esperança dele ainda segue viva. Ele ainda não sabe como vai ser a relação da família quando for aos natais com uma barba no rosto, mas diz que, no dia que o processo estiver mais evoluído, ele vai ser “uma pessoa muito mais confiante”.
Se jogar no mundo de cabeça erguida é um processo para todos nós, pessoas LGBTQIAPN+. Enquanto o queixo ainda não está preparado para ser exposto - e não buscado - para enfrentar cara a cara as violências do mundo, a gente ainda vive presa. Ou, como Jordana coloca, sob uma máscara. Ela não “fingia ser outras pessoas, mas fisicamente parecia ser outra”. Até os dezenove anos, a garota estava bloqueada e vivendo as violências constantes que marcam, o que arrisco dizer, todos os corpos. Coisas, talvez, da heteronormatividade compulsória.
Para chegar ainda num padrão de “feminilidade exacerbada” ela já até chegou a ficar sem voz. As cordas vocais não aguentaram. Mexe de cá, uma forçada de lá, e sumiu. Tudo isso, para ela, era uma forma de agradar, mesmo dizendo, logo em seguida, que não foi tanto um problema, pois muitos ainda diziam que ela conseguia passar despercebida “em alguns momentos”. Com todos esses movimentos, ela se lembra muito do seu processo, colocado como: amadurecimento.
Olhar e enxergar o movimento em que se refletia nos seus personagens, como no Habbo Hotel, veio a calhar em um momento importante da vida de Jordana: quando as questões de gênero começaram a entrar na sua cabeça. Num outro jogo ainda, constante, do eu por eu, foi por volta dos dezoito anos que ela conheceu alguém que era igual a ela e estas coisas vieram a aflorar. Até então, ela nunca “tinha conhecido ninguém que passava pela mesma situação”. Laura, garota portuguesa, é uma parte importante na vida da Jordana.
Eu a conheci durante a apresentação de um documentário para conclusão do curso da Jordana, numa manhã de início de semana, se não me engano. Apesar do sono, minha cabeça conseguiu fazer e conectar caminhos tão importantes naquele dia, que hoje acho que integram a coluna dorsal da tentativa de escrever esse texto e costurar tantas histórias. Jordana me conta, antes ou depois da história, da importância que Laura teve para novos horizontes da sua vida e para construção do seu vídeo-relato sobre vidas trans.
Laura aparece na vida de Jordana em um grupo de amigas LGBTQIAPN+. Jogando GTA Roleplay. Elas faziam parte da mesma facção de uma cidade. No jogo, elas criaram uma “facção só de mulheres”. Nesse momento, a experiência de jogar e curtir com a amiga ainda não tinha chegado. Ela fazia as atividades que eram propostas pelo jogo com uma outra garota portuguesa, que tinha a mesma disponibilidade de estar online que ela. Foi aí que Jordana se tornou mais uma das “Beths”.
Apresentada e agora parte das garotas, ela notou a Beth 4, mais conversadeira. As Beths começaram a ficar cada vez mais próximas. Foi nesse momento que a quarta “irmã” passou a ter o nome de Laura. Além disso, ela passava também a ter uma história. A cada momento narrado por ela, Jordana ficava mais intrigada. Afinal, até então ela nunca tinha ouvido alguém falar tão proximamente sobre as coisas de gênero.
Quase que num movimento cósmico, ela diz ter sido sentida - e percebida - por Laura. Dentre as explicações sobre o processo dela, a insegurança foi subindo e, dentre horas de jogo, a conversa também foi tomando forma, confiança e segurança. Não ironicamente, é o que a Jordana se lembra: de ter tido espaço para falar e ser ouvida, “eu lembro que ela até me falou: se você tiver alguma dúvida sobre isso, você pode conversar comigo”.
Assim, Laura foi a pessoa que explicou para ela o que é ser uma pessoa transgênero, isso tudo durante a partida de um jogo. O que soltou questões “acorrentadas” e trancadas em mil cadeados, como coloca Jordana. A cada quebra de cadeados, a cada novo passo dado, ela já se sentia capaz de perceber que “pera [espera], eu sou assim?”. Ao mesmo tempo que esses questionamentos tomam parte do cotidiano e agora com um aparente acalanto, eis que se pode tratar de mais um caminho na vida de Jordana, a sua identificação: “nossa, ela é igual a mim!”. Como num quebra-cabeça, essas histórias também foram se encaixando, até que ela pôde dizer que se encontrou, de fato.
Para outros, o Habbo parece ter sido também um lugar para conhecer o mundo pop e ser experimental. Isso, junto com a personalidade conversadeira de Jonas, o permitiram estar no jogo e também dentro de vários grupos e comunidades. Os locais eram certeiros: sempre quartos de conversa. Nesse vai e vem pelos lugares pixelados, e até mesmo extrapolando esse limite do jogo para um fórum ou rede social, a cultura pop americana tomou o olhar dele.
Até como uma questão de estereótipos - como ele mesmo disse -, aos seus doze anos e com a percepção se formando sobre ser gay, isso tomava todo o seu tempo. Curiosidade, muita curiosidade. Era informação sobre uma cultura diferente do que tínhamos acesso aqui no Brasil e, principalmente, num momento em que ele estava entendendo “o que será que eu sou” e o por que da diferença. Foi aí que as baladinhas e quartos de relacionamento LGBTQIAPN+ foram um prato cheio.
Dentro e fora do jogo, Jonas chegava até a trocar ideias com pessoas mais velhas, na tentativa de conhecer mais sobre o mundo. Daí, foi se construindo, além de uma experiência de mundo, o repertório além de uma questão musical, mas rumo a uma estética visual onde, para ele, a figura feminina e a feminilidade sempre estiveram no topo. Citando algumas figuras como Britney Spears e Paris Hilton, Jonas lembra (e me leva ao passado) de que, de fato, para os jovens dos anos dois mil - e com alguns privilégios de acesso - elas eram O MOMENTO.
E isso enche os olhos de uma criança que está com a cabeça, vez ou outra, ligada aos questionamentos sobre a sua sexualidade. Lady Gaga, um vestido de carne. Ser estranha e ainda ser aplaudida. Para o Jonas, até uma pessoa heterossexual, principalmente as garotas, poderiam ver aquilo e falar: é lindo. Para além do charme, para ele, ser estranha e ser ainda aplaudida por isso é o que eleva o sentimento à prática.
Antes mesmo de que isso fosse um pensamento para nós, passar os olhos e ver tantas possibilidades diferentes do que, talvez apenas um sertanejo universitário, revela o potencial imenso de descobrimento que as redes tiveram para alguém que nasceu, criou e está no interior também. Mesmo imerso na cultura mineira, ele ainda conseguia levar os olhares ao mundo virtual pela sua possibilidade de ser eStRaNhO, com orgulho.
Assim, se pixelvestir-se no jogo nunca foi tanto uma questão a ser levada por Jonas para fora do mundinho virtual de forma negativa. Os conflitos se davam até mesmo dentro dos próprios quartos do Habbo, e nem tanto por questões de gênero ou sexualidade. Se explicar demais, é daí que vem todos os problemas para ele.
Questionamentos são importantes, principalmente quando fazemos para dentro e com o dever de respondermos a nós mesmos. É a autonomia de ser e enxergar nosso próprio corpo a partir dos nossos olhos. Isso, pois “muitos questionamentos nem são relevantes para nossa sexualidade”, por exemplo. Ygor e eu entramos em uma discussão muito importante quando nos vimos pela primeira vez neste ano para o fechamento desta reportagem: gostar ou não de futebol não deve definir se uma pessoa atende ao espectro da comunidade LGBTQIAPN+.
Às vezes, isso se transforma em monstros tão grandes. Tudo pela incapacidade e preconceito guiados pela heteronormatividade em colocar nos outros a “lupa” rumo às mentalidades e valores de que tudo o que é diverso é eStRaNhO, é abjeto.
eStRaNhOs e desprezíveis... CUIR. O processo é longo e foi, por exemplo, para o Ygor. Antes, era preciso conseguir processar as perguntas que outros faziam no decorrer da vida. Bem como, pensar sobre as perguntas reais que devem ser feitas para nós em todo esse momento que é vivido, sentido e outras tantas coisas mais.
Refúgios. Às vezes, são esses os locais essenciais para se construir o início de uma história quando não se tem mais nada. Seja simplesmente por ter alguém para conversar, para conhecer, para passar o tempo ou talvez nem ser questionado sobre quem você é. É ter dez anos naquela época, como o Ygor, e poder, por exemplo, soltar todos os sentimentos e conversar com alguém que não vai te olhar como anormal. Justo seria isso acontecer no mundo real, mas é sorte termos ainda refúgios em outros mundos.
Ygor me questionou e se questionou sobre algo muito importante: como, dentro de uma plataforma, dez horas se passavam e ele poderia conversar com todos, quando na vida cotidiana, na própria escola, isso não era possível? Eu fiquei em silêncio por um bom tempo. E ele me provou e deu a resposta: é o exemplo nítido da estrutura que foi construída para que os nossos corpos gays, lésbicos, bissexuais, transgêneros, transsexuais, andrógenos,… não se ajustassem. Que fossem horríveis e por isso jogados no submundo, para viver sob toda a vida cotidiana dos outros.
A identidade virtual, sem muitas limitações, deu a volta na vida de muitos e, mais ativamente, na vida do garoto paulista. Mesmo novo, o tempo passou e o jogo foi um divisor de águas. Quando a vida não suportou as suas necessidades, ele teve de trazer vida do virtual para o real.
“Hoje, eu me sinto muito à vontade”, foi uma das últimas coisas que escutei dele durante a entrevista. Mesmo que uma possibilidade tenha sido criada com pessoas à distância, ele pode construir fora do jogo uma comunidade de amigos que o respeitam, fazendo com que sentir-se “muito livre para ser quem sou” não seja mais uma questão como no passado. Liberdade à vida dos outros é o que que ele parece desejar em todo momento que fala sobre a mudança do jogo na vida.
Mudança essa que vaza com o passar do tempo e faz da vida no mundo real também um ponto de encontros. Permitindo, talvez, que depois de um tempo, o retorno a esses refúgios seja para realizar, por exemplo, “um sonho que era de infância”. Ygor não joga mais, mas voltou ao jogo para construir algo que foi o início da sua história habbiana: um labirinto. Ora, nada mais simbólico do que ter nas mãos o poder de construir suas próprias encruzilhadas, não mais refém dos diferentes caminhos criados pelo outro.
Reportagem produzida por João Gabriel Palhares,
sob orientação da Profa. Dra. Mariza Fernandes.
As imagens do material foram reproduzidas
e criadas a partir do site do jogo Habbo Hotel.
© 2024-2024. Esse material é estritamente pedagógico e sem fins lucrativos, sendo um Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás. FIC/UFG.